
Era um começo de noite chuvosa e melancólica, em 1987. Eu estava na sala de casa, móveis arrastados para os cantos e as paredes cobertas de telas 2m x1m com moldura de madeira e plástico esticado. Eram 10 telas que decorariam as vitrines da Loja Paratodos.
Eu as estava pintando em série, com os textos e as imagens da promoção que iria começar no dia seguinte. A umidade do ar complicava meu trabalho, a secagem da tinta precisava ser apressada com um secador de cabelos e a segunda demão não podia ter muito solvente, pois diluiria o seco ao toque da camada de baixo.
Jamais vou esquecer do sono, do cheiro de tinta, do trabalho solitário e daquela chuva hipnotizante que pedia o conforto da cama. Me atormentava a luta do dever contra o querer.
O prazo é uma tortura psicológica muito eficiente. Eu pensava que poderia ir dormir e acordar bem cedo, 4 da manhã, para continuar o trabalho. Mas qualquer erro ou contratempo seria fatal. Às 10 horas do dia seguinte a Kombi da loja estaria buzinando ali na frente para carregar as telas, que deveriam estar secas para o transporte. Além do mais, eu me conhecia, se fosse tentar dormir iria acordar a cada meia hora, preocupado com o prazo e seria atormentado por sonhos nos quais tudo dava errado, o cliente jamais me olharia na cara, nunca mais teria trabalho na cidade e me tornaria um mendigo. Minha psique sempre foi melodramática.
O prazo é uma tortura psicológica muito eficiente. Eu pensava que poderia ir dormir e acordar bem cedo, 4 da manhã, para continuar o trabalho. Mas qualquer erro ou contratempo seria fatal. Às 10 horas do dia seguinte a Kombi da loja estaria buzinando ali na frente para carregar as telas, que deveriam estar secas para o transporte. Além do mais, eu me conhecia, se fosse tentar dormir iria acordar a cada meia hora, preocupado com o prazo e seria atormentado por sonhos nos quais tudo dava errado, o cliente jamais me olharia na cara, nunca mais teria trabalho na cidade e me tornaria um mendigo. Minha psique sempre foi melodramática.
Entrei a noite e a madrugada pintando como um autômato, imaginando que um dia existiriam autômatos de verdade para fazer este trabalho repetitivo. Eu teria um destes robôs e meus dias seriam mais livres, nunca mais eu teria uma noite de chuva insone. Melhor: eu poderia ter até tardes chuvosas premiadas com um cochilo enquanto a máquina ficasse pintando o que eu havia criado para ela.
2025. As 10 telas que eu demorava 20 horas para pintar, uma impressora de grande porte leva 2 horas, com qualidade fotográfica. As artes que eu fazia na mesa de desenho, com nanquim, Letraset, gouache, aquarela líquida, colagens de papel fotográfico e muitas horas gastas, hoje são produzidas em minutos, com muito mais qualidade. Uma ilustração que pode levar 5, 10, 20 horas, hoje é produzida em meio minuto.
Não vou entrar na discussão homem versus máquina, vou continuar desenhando e criando mesmo se a IA dominar o mundo e vou usar as ferramentas tecnológicas, como sempre usei, para o trabalho profissional do dia a dia.
Não vou entrar na discussão homem versus máquina, vou continuar desenhando e criando mesmo se a IA dominar o mundo e vou usar as ferramentas tecnológicas, como sempre usei, para o trabalho profissional do dia a dia.
A pergunta que me faço é “o que estamos fazendo com o tempo?”
O meu sonho de ter autômatos e tempo livre se tornou um pesadelo no qual as horas encolheram radicalmente. Produzimos em menos tempo, mas vendemos o trabalho mais barato e colocamos mais trabalho nas horas que sobram, pois assim ganharemos mais dinheiro. Ganhamos mais dinheiro e gastamos mais em coisas que estão sendo produzidas loucamente por um mercado cada vez mais saturado de necessidades desnecessárias. Minha profissão ajuda a criar necessidades e eu, por vezes, me afogo nelas.
O meu sonho de ter autômatos e tempo livre se tornou um pesadelo no qual as horas encolheram radicalmente. Produzimos em menos tempo, mas vendemos o trabalho mais barato e colocamos mais trabalho nas horas que sobram, pois assim ganharemos mais dinheiro. Ganhamos mais dinheiro e gastamos mais em coisas que estão sendo produzidas loucamente por um mercado cada vez mais saturado de necessidades desnecessárias. Minha profissão ajuda a criar necessidades e eu, por vezes, me afogo nelas.
Nos anos 1980 tinham 4 marcas de carro e os modelos disponíveis não deveriam chegar a duas dezenas. Perdi as contas de quantas opções de carros temos hoje. A variedade e o mercado aquecido é bom, dizem. Mas até que ponto? Quantas horas de vida entregamos por um carro? Por uma roupa de marca? Temos que ter esta quantidade de coisas acumuladas enquanto o tempo de vida vai indo pro ralo? Talvez alguém pergunte: “mas o que é tempo de vida? Não é justamente ter coisas legais para curtir?”
Esse é o problema, já não sabemos mais como curtir a vida sem as comprinhas, sem os objetos da vez. Fica evidente a frase de Schopenhauer “A vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir.”
Esse é o problema, já não sabemos mais como curtir a vida sem as comprinhas, sem os objetos da vez. Fica evidente a frase de Schopenhauer “A vida é uma constante oscilação entre a ânsia de ter e o tédio de possuir.”
Quando nos perguntam como vão as coisas respondemos com certo orgulho: “na correria, uma loucura!” E a resposta, antes do outro sumir na avalanche do cotidiano é: “Isso é bom, sinal de trabalho!”
Estar sempre apressado é sinônimo de sucesso enquanto amargamos o vazio de uma vida cheia. A produtividade, que em tese serve para aumentar a eficácia e ter mais tempo livre, transformou-se em exaustão.
Estar sempre apressado é sinônimo de sucesso enquanto amargamos o vazio de uma vida cheia. A produtividade, que em tese serve para aumentar a eficácia e ter mais tempo livre, transformou-se em exaustão.
Temos que trabalhar para sobreviver, para alimentar as redes e ser relevante, para se atualizar profissionalmente num ciclo infinito, para ter opinião sobre tudo, para seguir a tendência, para apresentar sucesso, para ter o copo Stanley, a camiseta que não amassa, a frigideira que não gruda, a mentoria que vai mudar nosso mindset.
Vi nas redes uma tendência ao minimalismo, mas para ser minimalista tinha que comprar o livro, o curso e fazer parte de um grupo que na verdade é uma lista de potenciais clientes. Para ser desapegado tem que comprar o kit desapego.
Nossa diversão virou conteúdo, nosso estilo de vida virou curso online, nossas horas de ócio viraram reflexões em vídeos selfie segurando um microfone cabeludo. Escovar os dentes pode ser um vídeo "dica rápida" aprendido em outro vídeo dica rápida ou um react à besteira que foi a dica rápida do outro. Nosso dia a dia não é mais nosso, é público. Somos produtos, já nem somos mais gente. E quando não estamos produzindo, descansamos consumindo.
Nossa diversão virou conteúdo, nosso estilo de vida virou curso online, nossas horas de ócio viraram reflexões em vídeos selfie segurando um microfone cabeludo. Escovar os dentes pode ser um vídeo "dica rápida" aprendido em outro vídeo dica rápida ou um react à besteira que foi a dica rápida do outro. Nosso dia a dia não é mais nosso, é público. Somos produtos, já nem somos mais gente. E quando não estamos produzindo, descansamos consumindo.
Sonhei com robôs e por um tempo virei parte de um motor. Minha sorte é que em tardes de chuva calma eu volto naquela noite insone de 87 e, enquanto fico segurando o secador de cabelos em frente a um logotipo recém pintado, viajo no tempo e me vejo aqui em frente a esta tela de led com mega resolução. O drama da falta de tempo, aqui neste futuro, é o mesmo velho conhecido. Percebendo o drama, me desatarraxo um pouco mais desta engrenagem viva.
Em que bela roda de ratos nos metemos, com tanta facilidade.
Thank you!