Foi nostálgico ir a Porto Alegre de ônibus depois de tanto tempo sendo transportado por uma tonelada de ferro particular sobre rodas. O ônibus nos obriga a horários e esperas, nos coloca no mundo dos outros ou os outros no nosso mundo, tanto faz. Talvez algum dia um pesquisador relacione a crescente falta de empatia ao fato de nos mantermos cada vez mais isolados do mundo enquanto dentro do nosso mundinho com ar condicionado, música, tecnologia e câmbio automático.
Aquele piso de basalto natural encardido até os rejuntes é o mesmo dos anos 1990, quando fazia semanalmente estas viagens, comia pastéis duvidosos e tomava cafés com sabor requentado nas lancherias da rodoviária. Descer dos degraus do ônibus e pisar ali fez abrir uma pasta de memórias.
Foi estranho ver a icônica passarela bloqueada, com metade destruída, aterrador foi lembrar a desgraça recente que foi o motivo de sua derrubada. Foi nela, numa das minhas primeiras idas a Porto Alegre,  que vi um mendigo atirado no chão, duas muletas jogadas no caminho dos passantes. Tive ímpeto de ajudar o homem, pensei que havia caído e ninguém se importava. Logo percebi que ali era o seu ponto de trabalho. Uma embalagem de produto de limpeza cortada à faca fazia a função de caixa para as moedas. As muletas atiradas eram sua placa de propaganda, tipo as outras em forma de cavalete que via no centro “Compro Ouro”. Ali as muletas diziam “Compro mais um dia”.
Durante meses, talvez anos, vi aquele mendigo atirado, suas roupas e pernas deformadas tinham a mesma cor encardida do piso da rodoviária. Só que o piso da rodoviária era polido, aquelas pernas eram ásperas. Pela cidade via mais mendigos, gente dormindo nas calçadas. Percebi que aquilo estava se tornando paisagem para mim. Um mecanismo de defesa, talvez, mas eu estava deixando de me importar. Já não fazia mais contato visual, pois sempre era a deixa para uma abordagem que eu não iria conseguir ajudar. Começava a entender porque as pessoas que circulam nas cidades grandes são mais fechadas. Começava a querer ter um carro.
Desta vez, décadas mais velho, décadas mais fechado, decidi não pegar um táxi, fui caminhando até o centro histórico, apesar do calor sufocante, fazendo o trajeto que fazia, (exceto pela passarela), nos anos 1990.
As grandes garagens estão iguais, só mudaram os homens sonolentos sentados aguardando clientes, hoje olham um celular em vez de um jornal dobrado ao meio. Aquele prédio mudou, lembro destes paralelepípedos. Ali está o Plaza e sua grande porta de vidro que o bandido em fuga arrebentou de carro. O prédio da loja Mesbla no qual eu entrava só para aproveitar o ar condicionado, agora é uma loja Riachuelo. Mudaram os pavimentos da Otávio Rocha e Dr. Flores e há patinetes elétricos para alugar, fiquei tentado, mas hoje não posso quebrar uma perna.
Na Rua da Praia desci da calçada, sempre gostei de ajudar a polir um pouco mais aquelas pedras, fico imaginando quantos pés já pisaram ali, cada par é uma história de vida que empreendeu passos apressados a cumprir seus afazeres.
No Centro Histórico fiz mais um capítulo da minha história. Amigos velhos, amigos novos, aprendizado literário e uns chopps, porque como diz o Chico “...que também sem a cachaça, ninguém segura esse rojão.”
Não há como não ficar inquieto com os contrastes. O velho, o novo e o menos velho, a memória e o esquecimento, os que têm cama e teto e os que só tem um pedaço de papelão. As pedras centenárias e as novas marcas da enchente, o sábado de quarenta graus e o domingo chuvoso de vinte. Não sei se a vida dá conta disso tudo, mas o que já sabia e confirmei é que a literatura dá.
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Obrigado!!
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