Gustave Doré - "Inferno" - A Divina Comédia (Dante Alighieri)

Foi assim que ficou definido, antes de todos esquecerem:
O céu e o inferno não serão lugares, mas períodos. Todos terão uma quota de tempo de inferno e uma quota de tempo de paraíso, nem sempre serão dias, às vezes serão horas, minutos, semanas ou meses.
Aqueles que são só lamento transformarão céus em infernos, aqueles que não lutam, transformarão tudo em um céu de engano e delírio ou num inferno de angústia sem fim. Aqueles que souberem aprender nos pequenos infernos e deleitar-se nos pequenos céus, terão o paraíso dentro de si. Agora vão! Usem com sabedoria o tempo e o destino.
Funcionou bem por um tempo, até que começaram com umas ideias de que céu e inferno eram lugares para onde se ia depois, pois agora havia a morte, e depois da morte deveria haver um lugar.
Este conceito ficou popular, ainda mais quando começou a dar poder e lucro para alguns.
Houve um momento para eliminar na fogueira os que ainda lembravam do conceito original.
Agora, com a morte, eliminar quem não se adequava era uma solução conveniente e definitiva.
Hoje pouco se fala sobre os dias de céu e de inferno. Multidões vivem hipnotizadas por uma promessa, ou pena, a se definir em um lugar ali no futuro, logo depois da vida, no saguão das duas escadas.
Esta promessa vã leva todos a levar a vida num inferno morno que se convencionou a chamar de conforto, onde tudo acaba tendo o mesmo gosto, a mesma cara. Os dias são débeis repetições deles mesmos, o que se convencionou chamar de quotidiano.
O sofrimento, para ser sofrimento, deve ter nuances de tortura. O prazer para ser prazer, deve ser cada vez mais saturado e saborizado.
Ficou num passado remoto o pequeno sofrer, o sentir a dor no olhar do outro, a tristeza sem motivo que faz pensar. Neste passado ficaram as efêmeras alegrias, o pé descalço na grama, a dança sem motivo, o estender a mão sem esperar retribuição, o presente sem data. O tempo para pensar, o pulso sem relógio, a lágrima derramada pela beleza da música.
É preciso haver uma desgraça para estes valores antigos serem tirados da caixa, pois agora são utilidades, não são mais mundanidades.
Quando estiver tudo bem, voltamos à hipnose, voltamos a ser paisagem morna, cuidando do nosso mundo infernal emulando um eterno céu digital.
"Vamos sair dessa melhores, mais humanos." Ouvi isso na pandemia, ouço de novo agora. Concordo que sairemos mais humanos, mas não melhores. Ser humano é tudo isso: solidário, crápula, generoso, aproveitador, herói, bandido, acolhedor, mentiroso. Somos céus e infernos o tempo todo. Esquecemos, ou escolhemos não lembrar, que eles não são lugares e que não estão no futuro. Se depois disso tudo lembrarmos desta regra antiga que acabei de inventar, se reaprendermos a saborear os céus e infernos dos dias, talvez possamos ser melhores, talvez consigamos até sentir o sabor original da vida.
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